
O ciclo Senses decorreu no Teatro Académico Gil Vicente entre Janeiro e Junho de 2007 e surgiu a partir de um convite da direcção do TAGV ao colectivo Cosa Nostra para organizar uma mostra centrada na nova música electrónica de características ambientais e experimentais, com especial incidência em projectos com complementaridade visual, a incluir no âmbito programático do TAGV Digital, dedicado à explorar a relação entre as artes do espectáculo e as novas tecnologias.
O evento inaugural contou com a presença de dois destacados nomes da editora inglesa Type Records: Xela e Helios deliciaram o público presente com concertos distintos e representativos de duas das escolas estéticas dominadoras na editora. O primeiro, John Twells, dono e mentor da Type, através de tumultuosas envolvências conceptuais convocou-nos para uma viagem de cariz surrealista centrada no álbum “The Dead Sea”, espécie de poema épico recheado de contornos algo macabros. Quanto aos irmãos Kenniff , no papel de Helios criaram atmosferas subtis e harmonias cálidas de reverência minimalista, numa presença sonora contida de contornos claustrofóbicos, suportada por uma imagem quase imutável ao longo de uma hora de serena introspecção performativa.
A primeira presença portuguesa aconteceu no segundo momento do ciclo, com texturas electrónicas a delinearem as interrogações relacionais de Vitor Joaquim presentes no trabalho “Flow”, com edição na excelente editora portuguesa Crónica Electrónica. Responsável pelos Encontros de Música Experimental de Palmela, Joaquim é também colaborador de Scanner ou Phil Niblock, além de ter intervenções multidisciplinares no campo do teatro, dança, cinema ou vídeo. A acompanhá-lo na manipulação visual esteve o projecto 3Leds de Laetitia Morais, com uma produção onde as imagens surgiam como seres vivos em constante mutação de acordo com o espectro sonoro sugerido. Na segunda parte deste dia pudemos assistir ao mais doce dos reportórios, com os ingleses Isan da Morr Music. Robin Saville e Antony Ryan transformaram o seu esculpir detalhado de melodias “ingénuas” em algo intenso e de dinamismo surpreendente, vislumbrando-se influência dub e noise, habitualmente mais discretas nos eloquentes registos pop de estúdio.
Ao terceiro mês chegou Vicki Bennett com o projecto People Like Us e o primeiro espectáculo mais centrado na manipulação de imagens. Uma excelente reciclagem de memórias visuais da cultura popular e a sua recontextualização contemporânea, geradora de encantatórios universos plásticos, suportados por uma banda sonora que flutuou entre subversivos momentos kitsch e easy listening,. A complementar a noite estiveram os alemães Donna Regina naquele que terá sido o espectáculo menos enquadrado no propósito de Senses: apesar de parecer deslocado, canções assumidamente pop lideradas por uma voz bela e invulgar, onde a electrónica passou para segundo plano e se deixou ofuscar por guitarras devedoras dos anos oitenta, contagiaram o público de forma terna.
Abril, quarto mês e quarto evento, proporcionou uma noite de contrastes, com a urbanidade eléctrico-industrial dos Kemikafields a materializar-se em incursões com estruturas rítmicas próximas da génese do electro, melodicamente devedor ao primeiro tecno de Detroit. Uma abertura perfeita para o espectáculo de Victor Gama, criador dos instrumentos Pangeia, dispositivos acústicos e instalações construídas através de um processo de experimentação, que teve como ponto de partida o fenómeno de metamorfose e evolução de instrumentos musicais, desde a pré-história até aos dias de hoje. Na companhia de Tiago Cerqueira apresentou um espectáculo onde o minimalismo de origem ritual se cruzou com música tradicional de diversas partes do globo, induzindo num estado catártico os que se deixaram envolver por este transe primordial.
Murcof, projecto do mexicano Fernando Corona, foi responsável pelo melhor espectáculo do ciclo. Uma harmonia perfeita entre elementos étnicos, neo-classicismo e electrónica inebriante eleva a música de Murcof a patamares de exigência únicos, num equilíbrio singular das diversas estéticas presentes na sua profícua obra, e que ao vivo transportou os presentes a um universo de sonhos sombrios e tortuosos. Como se a dor e as lamúrias do mundo se transformassem em notas soltas fugindo à "ordem" da pauta. Inesquecível.
No último espectáculo de Senses, os FM3, projecto dos noise poets Christiaan Virant e Zhang Jian, desenvolveram dois dos contextos subjacentes à sua vasta discografia. A primeira parte consistiu num exercício lúdico de manipulação das famosas Buddah Machine, com loops sonoros em mutação e interacção a substituírem peças de um eventual jogo de tabuleiro. A segunda parte seguiu o mesmo perfil de repetição melódica, agora com instrumentação mais convencional: o exercício Plan Marshall partiu do conceito wall of sound e foi-se transformando paulatinamente, com o adicionar regular de diversas fontes sonoras, num crescendo de intensidade. Evocação drone da música microtonal e minimalista da escola americana de Terry Riley ou Brian Eno.
Em suma, disponíveis para a alucinação ou para a poesia digital, algures entre a arte e a festa, ao longo do Ciclo Senses músicos-programadores-artistas, trabalhando fontes sonoras concretas e aleatórias, expuseram ruídos microscópicos, tonalidades pop ou sonoridades de cliques, tendo obtido no mesmo espaço reacções frias e distantes e reacções curiosas e hedonistas, resultado de uma intensa exploração do sentido dos sentidos.
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