14.1.07

o sr. antónio




É com o sr. António que passo mais tempo há já seis anos...
Anda na casa dos cinquenta e picos e é(bem) pré-reformado bancário, um celibatário desastrado, um melómano sabedor, um ex-cinéfilo desiludido, um ex-literata avisado e um coração amargurado por uma solidão generosa...
Chega por volta das quinze e parte por volta das dezoito, diariamente por essas horas, discorremos sobre o Sporting que para mim é sempre bom e para ele nunca preenchedor, sobre a violência gratuita do cinema contemporâneo que lhe aparece e a que eu evito, não de todo, sobre os mitos gregos e romances da história que permitem ou não boas interpretações operáticas na voz de Callas e do porquê de não me vender os primeiros lp's dos Kraftwerk enquanto explode uma M.I.A. de revoluções para si já vividas, sobre o critério dominador de sua mãe que lhe permite aceder aos prazeres do folhetim nocturno na vez de assistir só, a um mais documentário sobre Roma Antiga, dos pulmões obstruídos e das frieiras que me são alheias à má coluna que partilho, da conta de farmácia que mês a mês se vai chegando à da discoteca apesar do hábito diário de que saberão a seguir, da visita à tia no seu lar de outras famílias à reunião de condóminos que nunca é marcada com a antecedência regular pelo admnistrador que, no meu caso, nunca conheci...
Não há dia em que não diga:
- "Pois é, Afonso! É assim a vida!"
Ao que invariavelmente correspondo mudo ou com um arriscado:
- "Então, assim como sr. António?"
Aqui há que resgatar o cordial e demorado tema do clima que ora nos faz suar ou gela os ossos, ora encharca ora não deixa pensar; a menos amena incompetência das repartições públicas e a porcaria dos computadores frente aos quais passo, sem que lhe ocorra, as mulheres que perdi e as que não tenho, e que afinal só empatam, os computadores, claro; ou a cervejinha de meio da tarde que preza e eu mais tarde, no emprego não, venero.
Distraidamente vai consultando a Diapason, Monde de La Musique ou a Jazzman ou o já célebre nosso livrinho azul, em busca da crítica positiva que lhe permita satisfazer a adicção, mais uma certeza e só uma verdade no dia.
Não há dia que não diga:
- "Bem, está tudo certinho, agora já não devo nada! Hoje foi a última compra."
- "Pois sr. António, amanhã conversamos!"
E com a cumplicidade necessária se vai concretizando a última compra há centenas de dias consecutivos. Aí, como em pouco, quero eu, somos parecidos. Aprendo muito com ele. Há sempre mais um disco. Conscientemente, não falamos muito de mulheres, política ou gastronomia. Reservo para isso outras partes do meu dia, o que ele fará também, decerto.

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